Ricardo Ruan – Letra Espírita
Que Jesus é o nosso guia e modelo, conforme consta n’O Livro dos Espíritos (questão 625), disso todo espírita mais atento aos estudos doutrinários está convicto. Sua passagem, aqui na Terra, é tida como a do Espírito mais evoluído que por aqui já passou. Numa época em que o “olho por olho, dente por dente” era o mote para a conquista de lutas diversas, suas palavras revolucionárias fizeram eco no íntimo das pessoas – do mais rico ao mais pobre, do mais letrado ao mais ignorante. A multidão aflita encontrava em Jesus a mão salvadora que lhes tiraria do abismo do sofrimento.
No entanto, será que, depois de mais de dois mil anos, essas palavras surtem o efeito necessário? Será que nós, espíritas, enquanto estudiosos das passagens evangélicas, compreendemos com profundidade tudo aquilo que esse grande Espírito veio nos trazer? Embora encontremos no grande acervo espírita estudos minuciosos relativos às passagens bíblicas, que vão desde livros e artigos a palestras e vídeos, parece que boa parte dos integrantes do Movimento Espírita brasileiro preocupa-se muito mais em levá-lo ao pé da letra, contrariando o método filosófico-científico da Doutrina, repetindo e propagando modismos, do que em extrair o teor verdadeiro das mensagens.
Jesus, sem sombras de dúvidas, foi um grande pedagogo para a nossa educação interior. Seus ensinamentos são um constante convite à construção da nossa própria ressurreição – do homem velho e primitivo para o homem novo e regenerado. Acontece, porém, que, quando ele disse “vinde a mim todos vós que estais aflitos e sobrecarregados, que eu vos aliviarei” (Mateus 11 – 28, 30), ele impusera uma condição para essa felicidade, que consistia na obediência à sua Lei de Amor e Caridade. Tal prerrogativa mostra-se ainda mais urgente nos tempos de hoje, cujos sofrimentos caracterizam a transição planetária pela qual estamos passando.
Jesus vai ainda mais longe quando traça os caminhos de obediência à sua Lei: “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo” (Mateus 22 – 34, 40), lançando mão de uma ideia que transpõe os limites da matéria, visto que amar a Deus sobre todas coisas não significa ter uma devoção cega e desesperada por uma figura personificada. Essas palavras, com o passar dos anos e das reproduções, sofreram alterações e inúmeras interpretações, sendo, comumente, associadas a uma imagem histórica de um Deus tirânico e vingativo, do qual devemos ter medo e por quem devemos tudo fazer como objeto de troca: se eu não obedecer a Deus, serei castigado e lançado ao fogo. (Acreditem, tem muito espírita acreditando nisso!).
O verdadeiro amor a Deus constitui uma manifestação natural que emerge do espírito e nos edifica, numa atitude diretamente relacionada à conexão com a nossa própria natureza divina. A preocupação de ser amado ou não por Deus soa ilógica quando se sabe que Ele “é infinito nas suas perfeições” (LE, capítulo 1). Jesus nos apresentou Deus como um pai infinitamente justo e bom, manso e misericordioso, que não precisa perdoar nem condenar, posto que a consciência humana já é, por si só, o instrumento de transformação. Aquele que ama a Deus é quem está consciente das leis que regem a Vida, e sabe respeitá-las; é quem esforça-se ao máximo para a sua plena execução, contribuindo da forma correta; é quem coloca a vida espiritual acima da vida material, e sabe esperar pacientemente e sabe suportar as angústias da alma; é quem, enfim, respeita os seres a sua volta e sabe reverenciar os mecanismos da vida, sempre sábios e infinitamente justos.
E amar ao próximo como a si mesmo? Jesus, como bom educador das emoções, traz-nos a importância do autoamor na jornada humana. Há quem confunda o autoamor com realização irresponsável dos nossos caprichos, assim como há, também, quem acredite que amar a si mesmo é ser excessivamente sincero e exigente consigo mesmo. Ele, porém, mostra-nos um amor preservador da paz, do culto aos hábitos sadios e dos cuidados morais, espirituais e intelectuais para consigo mesmo. Quando me aceito como sou e vejo em minhas imperfeições situações temporárias – uma vez que me esforço para corrigir meus erros –, estou amando a mim mesmo. Quando me dedico, diariamente, ao exame de consciência, à meditação, ao autoconhecimento, estou dando provas de amor a mim mesmo. Amar a si mesmo é sair do “autodistanciamento” para o autoconhecimento.
Somente assim a criatura poderá lograr os caminhos do amor ao próximo sem orgulho e egoísmo, os dois grandes entraves do nosso progresso. Se a indulgência para com as imperfeições dos outros é uma das grandes definições da verdadeira caridade, como praticá-la se não conhecemos as nossas próprias limitações e os desafios a elas inerentes? Se eu sei o que dói em mim e o que desejaria receber nesses momentos, fica mais fácil encontrar caminhos para auxiliar o outro.
Se eu quero aprender a virtude da paciência, não será onde todos concordam comigo, mas sim onde as pessoas pisam no meu calo. Se eu quero aprender a benevolência, será onde as pessoas não reconhecem o que eu faço, a fim de que eu possa aprender a dar sem esperar. Do mesmo modo, se eu quero aprender a ser indulgente para com as fraquezas alheias, necessitarei conviver com quem as possua. Antes de reprovar uma falta de alguém, consideremos se a mesma reprovação não nos pode ser aplicada.
É desse modo que as palavras de Jesus mostram-se profundas e enormemente carregadas de significado interior. Quem quiser aprendê-las somente ouvindo-as ou lendo-as, talvez não extraia o teor verdadeiro. Ressurreição, para o espírita, é deixar as máscaras de lado, modificar em si os próprios espinhos, acordar para a verdadeira vida, que é a espiritual. Nós nunca nos dirigiremos à perfeição sem o aprimoramento e a sublimação de nós mesmos. Está na hora de compreendermos melhor Jesus.